PROVA DE VINHOS MADEIRA

PROVA COMENTADA POR PAULO CRUZ, DIANA SILVA E PAULO BENTO

ATÉ AS XIX!

Quando o silêncio diz tudo

Quando nos propusemos organizar uma prova de vinhos da Madeira do séc. XIX, sabíamos que não iríamos ter pela frente tarefa fácil, pois na memória ainda perdurava a brilhante lição teórico-prática com que o Ricardo Diogo nos tinha brindado no ano transato. Acrescia o fato de não sermos enólogos nem profissionais, apenas enófilos apaixonados. Mas foi isso sobretudo que nos deu gozo. Tentarmos dar o melhor de nós, sabendo que não somos perfeitos, mas que iríamos fazer o melhor que podíamos e sabíamos. Tentarmos não defraudar. E ficarmos, simplesmente, felizes por isso.

Esta teria que ser uma prova de amadores para amadores e amantes do(s) vinho(s).  Uma prova para os amigos que se fazem por causa do vinho, para os amigos que o vinho junta e para os amigos que se juntam pelo vinho.

Na sua génese, esta prova teria que ser uma festa, uma celebração, um momento para fazermos história (arriscamo-nos a dizer que, em Portugal continental, poucas vezes se juntaram na mesma sala e ao mesmo tempo tantos vinhos da Madeira do séc. XIX). Aquela tarde seria um momento para revisitar a História e para termos uma história para contar. Um momento para bebermos juntos. Um momento para sermos extravagantes. Um momento para sermos, como diz o Paulo Cruz, #maradosdatola!

A primeira etapa passou por escolher os vinhos, dentro dos lotes que tínhamos disponíveis. E criar depois um alinhamento que tentasse, na medida do possível, ser coerente. A ideia inicial assentava em partirmos dos vinhos mais secos para os mais doces e, dentro dos exemplares disponíveis de cada casta, organizá-los por ordem cronológica. Seria lógico! Racional! Se não estivéssemos a falar de vinhos do séc. XIX! E da Madeira!

Tudo isso caiu por terra quando abrimos e provámos os vinhos 6 dias antes da prova. Face à diversidade dos exemplares em prova, o alinhamento teria que ser feito de maneira a que um vinho não se perdesse no meio dos outros. Vinhos que per se brilhariam sempre, podiam correr o risco de serem ofuscados pelos seguintes ou pelos anteriores.

Não foi fácil. Tivemos que excluir um vinho de 1881 pelo seu caráter oxidativo. Se nos outros exemplares isto se revelava como uma virtude, neste em particular os defeitos sobressaíam, como se fosse um vinho que tivesse envelhecido por estufagem e os aromas aborrachados, desagradáveis e queimados dominassem toda a prova. Colocámos um Listrão depois de um Reserva de 1825. Um Frasqueira antes de um Solera. Um Terrantez depois de um Malvasia. Um Sercial a terminar. Tivemos que tomar decisões. E assumi-las, com toda a subjetividade inerente a uma escolha.

E chegou o 10 de Março. O dia em que a Madeira desceu uma vez mais a Seteais. Disfarçada de extravagante. Sedutora e altiva. Pronta a brilhar e a deixar marcas neste seu passeio por Sintra. E com ela veio a Diana e os seus conhecimentos da região, dos seus segredos, dos seus vinhos e das suas gentes. A nossa “muleta”, a nossa parceira, a nossa amiga. Preparada e entusiasmada. Sorridente e entusiasmante.

Antes de entrar na sala onde iria decorrer o evento, passei novamente pelo backstage. Fui cheirar os vinhos uma vez mais. Sorri para um funcionário que trabalha há mais de 40 anos no Hotel quando me disse que o perfume se sentia até às escadas. Relembrei o que o Ricardo Diogo me tinha transmitido sobre um Sercial de 1870. Pisquei o olho à Teresa e à Inês quando as vi compenetradas na tarefa que tinham em mãos. Observei a seriedade e o cuidado com que a Débora e o Carlos serviam as doses. Acenei com a cabeça ao Artur, enquanto ele tirava mais uma fotografia. Agradeci à Leonor quando pus o crachá ao peito. Dei um último abraço nervoso ao Paulo Cruz. Reganhei toda a confiança do mundo no sorriso da Diana. E entrei.

É bom estar na presença de amigos. Sabe bem entrar numa sala e ver pessoas que conheces há mais de 40 anos no meio de gente que veio de inúmeras partes de Portugal e até do Alaska “só” para isto. Sabe bem ir festejar com os amigos que te iniciaram nestas coisas do vinho e com as pessoas com quem provas hoje em dia. Sabe bem ver críticos reconhecidos e ilustres desconhecidos juntos, num momento de comunhão e de partilha. Sabe bem ver o nervosismo a desaparecer. Sabe bem gostar do vinho. Sabe bem gostar de vinho da Madeira.

Seria complicado estar agora a falar em pormenor de todos os vinhos, até porque cada pessoa terá interiorizado coisas diferentes. Quer queiramos quer não, a prova, apesar de ser feita em conjunto, é um prazer solitário. E o bom da subjetividade é que tudo é válido, porque é nosso. E nosso apenas.

Ficar-me-á para sempre na mente o Reserva 1825 Freitas & Irmão, por ter sido o vinho mais antigo que já bebi, a novidade de ter provado um Listrão do Porto Santo, a concentração e a opulência do Malvazia Reserva 1900 da Oliveiras, o caráter cítrico e fármaco do Verdelho 1850 da C.V.M, a envolvência e a finesse do Boal 1860 da Artur Barros e Sousa, a persistência salina do Leacock Sercial Solera 1860, a complexidade do Terrantez 1846 da Borges (impressionante como o nível sedutor de doçura e de “calor” do seu aroma é totalmente contradito ou complementado pela frescura da sua boca) e a chapada que se leva quando se prova o Torre Bela Sercial 1865.

Vão ficar-me na memória a defesa apaixonada da Madeira feita pelo Dr. Adelino Sousa e pela Diana Silva; as intervenções elucidativas do Manuel Moreira e do João Paulo Martins; a introspeção e os comentários apaixonados mas precisos da Valéria Zeferino; a “dificuldade” do Edgardo Pacheco em saber como iria transmitir o que estava a sentir aos seus leitores; o comentário do Skip Clary quando afirmou, em jeito de brincadeira, que havia mais ácido naquele Sercial de 1865 do que tinha havido em Woodstock, bem como a observação de um dos presentes referindo-se a uma garrafa como a senhora com quem gostaria de dormir e a outra como aquela com quem gostaria de casar.

Vou reter para sempre as conversas, a cumplicidade, a amizade com o Paulo Cruz e o voto de confiança dado. Os pensamentos, as preocupações, as dúvidas e a alegria do objetivo cumprido.

Mas sobretudo, ao observar as pessoas, extasiadas e contemplativas, como se se questionassem acerca do que estava a acontecer e do que lhes estava a acontecer, na memória ficará eternamente o silêncio do prazer.

PAULO BENTO

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